9.11.13

eclipse em escorpião


acho que a morte deve ser uma experiência mineral,
uma saudade-fóssil igual a quando o amor se vai.

(o amor não vai, meu caro, o amor está aí)

qualquer medo é inútil:
todo fim é um abismo que revela
nossas próprias asas.

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6.11.13

Dochenmachers


Estavam encaixados na cama, ao mar sereno. Os dedos flutuavam, bem devagar, rasantes desenhos nas peles enquanto conversavam. Era uma preguiçosa manhã de domingo.

ela
Sabe, tava pensando aqui quando a gente tiver nossa filha... Ela vai brincar com as bonecas que guardei da minha infância. Aliás, se for menino também.

ele
Claro que não.

ela
O que é isso? Qual o problema dele brincar com a Barbie?

ele
Isso. A Barbie. Olha só o que essa boneca representa.

ela
Não acredito nisso. Você acha mesmo que faz diferença? Que tem como evitar? É uma blindagem boba, a gente não dá e vem algum padrinho, alguma tia ou prima distante e pronto. Além disso minha Barbie é morena.

ele
Mas continua a Barbie.

ela
Porra, muda o nome então. Chama, sei lá, de Susie, de Teresa!

ele
Ou Maria Bonita.

ela
Clarice Lispector.

ele
Rá, sabia, a Clarice de novo. É Clarice ali, Clarice aqui e acolá, Clarice no feicebuque, nem da Barbie ela se safa.

ela
Caraca, tu é chato quando quer, hein? Chama de qualquer merda então!

ele
Taí, 'Qualquer Merda' é bom.

ela faz uma caretinha
Idiota.

(silêncio breve)

ele
Porra, Barbie 'Clarice Lispector' é genial. Pode vir com um baralho de citações.

ela ri
Pára, chega! (...) Ah, sabe, tenho que confessar que cheguei a pensar que você fosse me criticar porque o nosso filho...

ele interrompe
Fred.

ela
Quêisso, maluco, já dando nome pro garoto?

ele
Não, o nome da boneca. É Fred.

ela não entende mas ri assim mesmo
Hã?

ele
Barbie 'Fred Mercury!' A gente pinta um bigode nela, põe uma roupa igual àquela do vídeo 'I want to break free.'

ela suspira, depois de um breve silêncio
Ah, não sei. Discordo, tem que ser internacional, é?

ele
Quêisso, surto nacionalista agora?

ela
Não, mané, a gente tem tanta referência boa por aqui...

ele
Verdade! Mané, por exemplo, lembra até o Garrincha.

ela
Ih, nem vem que ele vai ser flamenguista.

ele
Caralho.


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5.11.13

Pequena canção cabisbaixa (com ponto de fuga)



perdi.
perco todos os dias,
todos os minutos,
me perco em milésimos
de segundo.

quando penso
já foi,
perdi.

perdi;
não me perderam
nem perceberam.
o que foi não volta
e
todos as noites estão
estateladas.

perdi,
não esquecerei
da falta de fé:
meu nome riscado,
meu ego na grama,
minha beca
de mané.


mas tolo é quem pensa
que há vergonha aqui:
perdi, sim;
não há chance melhor
de ganhar.

Dry Square

A Praça Seca foi atravessada,
arrombada, estuprada.
Moisés, auxiliar de pedreiro,
de bico em bico ajudou
a abrir mais um corredor no meio
daquele mar.
"Deus escreveu,
vamos lá executar a sua obra."

A Praça Seca foi executada
por obra divina;
bagunçaram seu coreto azul
agora órfão de praça.
Uma praça que não pediu para ser
o Mar Vermelho:
uma verdade carmim
sem paz celestial.

Arregaçada praça
das vidas secas,
lodo e cascalho,
atalhos para pedestres,
motos,
tiros,
sangue e
asfalto.

22.10.13

Farfalle al Pesto de Zêna

por andré mantelli


Falar em pesto genovês pode parecer pleonasmo, mas não é.  Sim, o prato nasceu lá na Liguria e, reza a lenda, trata-se de mais uma mítica receita de subsistência improvisada na guerra. Em determinado momento da batalha em solo campesino, alguns soldados teriam preparado um molho aproveitando as moitas nativas de basilico e o queijo de umas cabras distraídas.

O pesto que descrevo aqui é o que aprendi com o meu pai. É verdade que nem todos os ingredientes conseguimos facilmente em solo tupiniquim; isso fez com que os italianos da família exercitassem a cozinha criativa e mesmo eu, mais tarde, encorajei-me no improviso de várias outras versões do prato.

Ah, tem uma coisa. Se você disser para um zeneixe que fez o pesto num liquidificador, correrá sério risco de ter o mesmo destino de Mussolini. Porém, não se preocupe, esta é uma receita popular, quando famílias operárias tinham que alimentar várias cabeças e o molho deveria ser farto — uma visita ao paraíso. Vale a pena, vai por mim.




1. Ingredientes

500g de farfalle (porção para 4 pessoas);
2 ramos médios de manjericão (misturar tipos é bem bacana, varie a cada nova experiência!);
2 molhos de espinafre (ou bertalha);
1 cebola média;
2 dentes de alho bem picado;
2 colheres/sopa de manteiga sem sal;
6 colheres/sopa de azeite extra virgem;
1 raladinha de noz moscada;
300g de queijo pecorino ralado(substitua ou misture com um bom parmesão, se for o caso);
50g de pinoli (se não achar – ou se encontrar com qualidade ruim, farelento – substitua por nozes trituradas);
Tomate-cereja a gosto.



2. Como fazer

a. No copo do liquidificador, coloque a cebola, o alho, manteiga, azeite, noz moscada.
b. Separe apenas as folhas do espinafre, sem os talos. Faça o mesmo com o manjericão.
c. Separe uma panela grande para cozinhar a massa. Com água, coloque primeiro o espinafre e espere ferver. Um minuto depois, acrescente o manjericão. Mais um minuto, coe as folhas mas reserve a água. Coloque as folhas no liquidificador junto com o queijo e liquidifique, aos poucos, acrescentando um pouco da água fervida das folhas até o molho verde atingir uma densidade cremosa.
d. Numa frigideira em fogo brando, pingue duas gotas de azeite e jogue os pinolis. Toste-os até passarem ligeiramente do tom rosado. Se não tiver pinoli, misture um pouco de nozes trituradas ao molho e guarde um pouco para jogar sobre o prato pronto.
e. Jogue a massa na água das folhas e espere ficar al dente.
f. Sirva os pratos (grandes, rasos e brancos!) individualmente com a pasta primeiro, depois o molho, os pinoli, tomates cortados e um pouco mais de queijo. 










24.7.13

Sai do chão, sai do chão, quem é contra a remoção.



Já tava bem confortável com meu amigo cão num sonho da madrugada, até que começou mais um episódio daqueles que a gente não pode deixar de anotar assim que acorda. No início parecia um grande palco de ensaio, bastidores, urdimento, coxias. Uma banda se organizava para ensaiar naquele espaço, a música era bastante familiar – a banda também. Dois sujeitos de terno foram mais ao fundo e rodeei-os como se tivesse uma câmera ficcional subjetiva. Eles conversavam algo conclusivo em voz baixa.

Então, tudo posto e entendido após esta introdução com cara de making of, aqui é que começa a história. Primeiro o lugar é contextualizado: plano geral de um pequeno edifício cinza solitário, sem vizinhos. Não dava pra entender quantos pavimentos eram, no máximo consegui perceber quatro, cinco andares contando as janelas.

Lá dentro, em um dos cômodos começava o que rapidamente identificaria como um 'laboratório de resistência.' As pessoas estavam ali contra a demolição do prédio e a remoção de seus moradores. E a banda que se propunha a compartilhar suas composições e letras, desdobrar novos arranjos a partir daquela experiência, era nada mais nada menos que os Beatles.

Pessoal, posso dizer que os rapazes eram muito legais, especialmente John e George. Bom, talvez os outros dois não estivessem lá, pensando bem. A coisa corria bem num clima de jam session, e nem um certo clima tenso no ar tirava a leveza e o foco das tarefas, o trabalho era de troca e era sério – de maneira que sabíamos que em algum momento chegaria a 'força da lei'. Contudo, isso nem de perto era uma expectativa. Adorei dar uns pitacos em Across the universe e The fool on the hill, e até riram quando perguntei de iam tocar Hey jude, 'meio chatinha, né?' Ufa, que alívio.

Quando a polícia chegou, pus a cabeça pra fora – uma janela velha com moldura de madeira já descascada– e lá estavam eles em boa parte da rua, os robocops do choque. Todos ali dentro mantiveram a tranquilidade. Na verdade continuavam indiferentes ao que se passava lá fora. Percebi então que a tarefa de descer era minha. O sisudo oficial de sei-lá-qual-a-patente com roupa de guerra e capacete queria dizer alguma coisa do tipo 'vamos invadir'. Eu fui rápido, com a cara que acusava a estupidez dele: 'tá maluco, mané, não tá ouvindo? São os Beatles!'

Lembro vagamente de mais pessoas chegando ao tal ensaio, mas 'encorpadas' (talvez fossem os policiais) que se agregavam ao ritual. Ninguém saiu.

Antes de acordar, li uma carta que deixaram. Fiz isso enquanto desproduziam o local. 'Tivemos realmente uma experiência muito boa, foi muito produtiva. Se muitas vezes não transparecemos isso, nos desculpem, é porque estávamos apenas muito cansados.'

Acho que a casa permaneceu em pé.

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