8.7.09

prático




















as noites parecem mais longas. nem os lençóis da cama cobrem os pensamentos. escuto hipnagogicamente variações do jacques loussier trio sobre as gymnopédies do satie. aquela luz panorâmica de abajur é o meu laptop, e sou conduzido até ela. nos tornamos sobreviventes do tempo, e aquela luz me lembra apenas uma parte do espectro de uma metrópole velada de estrelas, de onde sempre tilintavam intermináveis códigos musicais.

estou aqui escorado numa tampa aberta de estante, um remendo de prancheta que me traz alguma satisfação. às vezes me impressiono como consigo encher rapidamente meu local de trabalho com apetrechos, cacarecos, espécies de widgets do mundo analógico, coisas últimas de primeira hora. são conexões, memórias, manuais, anotações em tudo quanto é tipo de papel (há sempre uma grande quantidade deles espalhada por aí para não desprevenir idéias), uma variedade de canetas próprias para esboços únicos (adequadas ao peso e à velocidade da imaginação), uma caneca verde de café esquecida com o primeiro gole, fios que se cruzam e alguns mosquitos filhos da puta deste nosso querido patropi.

a cadeira é confortável. é uma das coisas que ainda carrego comigo, de um ultrapassado empreendedorismo delirante. manter a postura correta, mesmo que seja apenas uma sugestão, inspira saúde. digo, é um belo assento para experimentar inquietude. quem sabe não seria a mesma coisa com um banquinho velho de madeira ou até mesmo um engradado de cerveja. ou um cajón. existem soluções ergonômicas que mal funcionam no ritmo de um ansioso. 

quase sempre o fim do dia é o início da manhã. o silêncio é tudo o que preciso e o único barulho que o entrecorta é o da água que transborda da caixa d'água da minha cabeça. a esta hora o travesseiro é a única companhia e testemunha de uma travessia pelejada na madrugada em transe. escrevo sobre a sombra da minha mão, deitada por uma luz pinacular tão amarela quanto meus olhos insones. tenho que levantar cedo, tarefa robótica que tenta expurgar o sono tardio do despertador. não existirá carcaça que resista ao mau uso.

não gosto da minha primeira cara no espelho. parece um retrato amarrotado recuperado da lixeira. até desenrugar a folha já terei gravado na mente alguns anos a mais. por isso, a água fria no rosto, além de hidratar a pele, te faz esquecer dessas idiotices.

pronto. parece que voltei ao presente novamente. com ele, algumas evidências de realidade. no banheiro, os azulejos cor-de-rosa dos anos cinqüenta me lembram que tenho que trocar a válvula da descarga, ou alguma tarefa parecida com isso. é evidente que a minha inoperância quelônia para assuntos de engenharia civil torna-me incapaz de compreender como funciona um mecanismo tão complexo, composto por pêndulo e bóias acionados pela tal válvula desgastada. ela deve ser a mola que falta no meu cérebro.

porém, não teria a menor vergonha de chegar na loja e dizer em alto e bom tom, 'olha, tenho um problema muito sério na sinapse que me torna inepto em aprender sobre o mais inofensivo dos sistemas hidráulicos, então, por favor, poderia me explicar sobre isso bem didaticamente como se eu fosse o seu neto?' o sujeito atrás do balcão, que bem poderia ser o meu avô – e com um pouco de sorte até seria – demoraria um pouco para reagir às minhas palavras, demonstrando toda a sabedoria e paciência de um ansião do comércio; ou quem sabe seriam os segundos mais longos de uma incredulidade mordaz por causa de tamanha parvoíce.

o café da manhã me reserva um lugar à janela. devoro duas metades de mamão quase soterradas pela granola enquanto penso no destino pictórico das minhas fotografias. antes de sair, alguns rastros de imagens tornam-se menos memórias que ilustrações editadas, prontas para mais um dia como outros tantos; faca, xícara, espatuladas de margarina, laranja, fogão, fio-dental, dentes, espelho, olhos, chaves, porta, rua, tchau.

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2.7.09

livre como uma feira


ele não imaginava
que tinha o céu
dentro da cabeça.

– não imaginava nada
aliás –

apenas volta e meia apareciam
umas nuvens
com sinceridade de algodão
que eram,
na verdade,
poréns,
contudos,
entre
tantos
outros céus
que o entorpeciam
de azul.

aqui no meio da feira
desbancado por verduras vivas, 
colorido
por toldos
por todos
os lados
e sem perder a mania de descobrimento
de pessoa
que passa além da dor.


era domingo
e ainda flutuava
o cheiro suave
de um sábado molhado.
um domingo de inverno
tão novo,
que deixava a xepa 
pro resto
da semana.

o céu o tinha
dentro da cabeça
e não imaginava mais nada.

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