28.8.09

as paredes não ouvem


agora estou numa caixa de livros e cafés
entre duas extensas ruas movimentadas.
uma elza soares ventríloqua sussurra,
no meu ouvido esquerdo
segredos do casal protossilábico sentado a dois metros de mim.
no ouvido direito, uma nuvem carregada
e os roncos pneumáticos de motores além-janelas.

a bateria do ipod acabou.
nem adiantaram mais dois pares de pernas
para arrumar rapidamente
um refúgio decente nessa balbúrdia toda,
longe desse ensurdecedor som selvagem
que corre impunemente pelas ruas.
diáfano desejo,
ondas sonoras caseiras
e toda a coragem que o silêncio contém.
o ipod mudo, sem música, sem vídeos,
sem o escudo mágico de invisibilidade
que me torna espectador do mundo.
estou aqui, sozinho e insonoro.

as vozes levitam no ambiente como bolhas de espumante.
existe uma certa embriaguez
para me trazer de volta à realidade.
o mundo é uma droga e é dele que sugo
uma seiva psicotrópica que reescreve lugares e pessoas.
presto atenção apenas nos retalhos.

assim.

telefone celular,
caldereta de vidro,
garrafa azul de plástico,
tampo de mármore da mesa,
guardanapos de papel.

a garçonete arrasta um prato, reco-reco.
cadeiras de madeira, oiti, jacarandá, mogno,
não é nada disso,
não sei nada apesar da cara-de-pau.
cadeiras alinhadas em série como torres de alta tensão.
as mesas, com os desenhos de xadrez na pedra,
são mais vazias porque estão fora de jogo.

a garçonete com os braços cruzados de vermelho.
ela olha para o casal protossilábico,
não sabe se ouve a conversa ou se a reinventa.
não sabe se vive a vida alheia ou se corre para casa.
será que mora no subúrbio?
será que ela anda de trem?
será que tem algum bicho de estimação,
um cão, gato, jabuti, peixe, maritaca?
será que ela sabe cantar ou,
quem sabe ainda, dançar?
será que vai ganhar na loteria?

água mineral carbogasosa,
alcalino-bicarbonatada,
alcalino-terrosa litinada e fluoretada.

estão pensando em abrir uma empresa.
é o casal que agora abriu as comportas das palavras fáceis.
eu não sei direito quais os trâmites, ela diz,
só sei que vou tentar passar a conversa na minha mãe
pra ela liberar alguma grana.
ele mal esconde columbinamente as palavras sob o bigode ralo.
arrulhos e bugalhos.
negócios. ela já fala nas parcerias
e na maria alice que é quem nem tinha pensado.
não é só uma empresa para ganhar o salário. gênios.
o sistema aniquilou o romantismo,
o sonho dos corações anarquistas.

cazuza e bebel, salvem a minha tarde.
eu preciso dizer que

_____

3 comentários:

lili disse...

diga...
gosto muito da elza soares ventriloqua!!!
genios!
¡ besos porteños!

bianca disse...

cazuza salva- as vezes :)
bjo

umbrancocolorido disse...

e as vezes.... nem cazuza salva!